Até o apagar das luzes da história da Grécia e de Roma, presenciamos a permanência, entre os homens do povo, de certo conjunto de pensamentos e de hábitos com certeza oriundos de época muito remota, mas no qual já se pode reconhecer o ideário original concebido pelo homem a respeito de sua própria natureza, de sua alma e do mistério da morte.
Até onde nos é dado remontar na história da raça indo-européia, de onde se originaram as populações gregas e italianas, observamos que essa raça jamais acreditou que, depois desta curta existência, tudo terminasse com a morte do homem. As gerações mais antigas, bem antes que existissem filósofos, já acreditavam em uma segunda existência para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte não como uma aniquilação do ser, mas como simples mudança de vida.
Onde, porém, e de que modo seria vivida essa outra existência? Acreditava-se que o espírito imortal, uma vez liberto do corpo, animaria outro corpo? Não, pois a crença na metempsicose nunca se arraigou no espírito das populações greco-italianas; tampouco era essa a crença dos antigos árias do Oriente, pois que os hinos védicos se lhe opunham. Acreditava-se então que o espírito subisse ao céu, para a região da luz? Também não, visto que a idéia das almas entrarem na morada celeste é relativamente moderna no Ocidente; o céu só era tido como recompensa merecida por alguns grandes homens e benfeitores da humanidade. Consoante às mais antigas crenças dos povos itálicos e gregos, não seria em outro mundo que a alma viveria essa sua outra existência; ficaria perto dos homens, continuando a viver na terra, junto deles.
Acreditou-se, durante muito tempo ainda, que nessa segunda existência a alma continuaria associada ao corpo. Nascida com o corpo, não seria dela separada pela morte; alma e corpo seriam encerrados juntos no mesmo túmulo.
Embora tais crenças sejam muito antigas, delas nos restaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos são expressos nos ritos fúnebres, que sobreviveram longo tempo às crenças primitivas, e, porque certamente nascidos com estas, serão úteis para que as compreendamos melhor.
Os ritos fúnebres mostram-nos claramente que, quando se enterrava um corpo no túmulo, se acreditava enterrar junto algo com vida. Virgílio, sempre tão preciso e meticuloso na descrição das cerimônias religiosas, encerra a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras: "Encerramos a alma no túmulo". Idêntica expressão encontra-se em Ovídio, e em Plínio, o Moço; isso não significa que tal tenha sido propriamente a idéia formada por esses escritores sobre a alma, mas quer somente afirmar que, desde tempos imemoriais, essa crença se perpetuara na linguagem, atestando, assim, crenças antigas e populares.
Ao término da cerimônia fúnebre, havia o costume de chamar três vezes a alma do morto pelo nome que ele havia usado em vida, desejando-lhe vida feliz debaixo da terra. Dizia-se-lhe por três vezes: "Passe bem". E acrescentava-se: "Que a terra te seja leve", em uma demostração de quanto se acreditava que o mesmo ser continuaria debaixo da terra e lá conservando a habitual sensação de bem-estar ou de sofrimento. No epitáfio, escrevia-se que o defunto ali repousava: afirmação essa que sobreviveu às próprias crenças que, atravessando os séculos, chegou até nossos dias. Empregamo-la ainda hoje, embora já ninguém acredite que um ser imortal repouse no túmulo. Antigamente, porém, tão firme era essa crença em que ali vivesse um homem, que nunca se deixava de enterrar, juntamente com o defunto, os objetos que se julgava viessem a ser-lhe necessários: vestes, vasos, armas. Derramava-se vinho sobre o túmulo para lhe mitigar a sede; deixavam-se-lhe alimentos para saciar-lhe a fome. Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que estes seres, sepultados com o morto, o serviriam no túmulo como o haviam feito em vida. Depois da tomada de Tróia, os gregos retornaram ao seu país, cada um deles levando a sua bela escrava e, tendo Aquiles que já morava debaixo da terra reclamado a sua, deram-lhe Polixena.
Um verso de Píndaro guardou-nos curioso testemunho desses pensamentos das gerações antigas. Frixos fora obrigado a deixar a Grécia e fugira para a Cólquida, onde veio a morrer; mas embora morto, queria regressar à Grécia. Apareceu então a Pélias e ordenou-lhe que fosse à Cólquida para de lá trazer a sua alma. A sua alma sofria sem dúvida a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família. Mas, vivendo ligada aos seus restos corporais, não poderia abandonar a Cólquida sem os trazer consigo.
Desta crença primitiva se originou a necessidade de sepultamento. Para que a alma se fixasse à morada subtrerrânea destinada a essa segunda vida, fazia-se necessário que o corpo, ao qual a alma estava ligada, fosse coberto de terra. A alma que não tivesse sua sepultura, não teria morada. Seria errante. Em vão aspiraria ao almejado repouso depois das agitações e dos trabalhos desta vida; seria condenada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais parar, sem nunca receber as oferendas e os alimentos de que necessitava. Desgraçada, logo essa alma se tornaria perversa. Atormentaria então os vivos, provocando-lhes doenças, devastando-lhes os campos, atormentando-os com aparições lúgubres, para alertá-los de que tanto o seu corpo como ela própria queriam sepultura. E disso se originou a crença nas almas do outro mundo. Toda a Antiguidade estava convencida de que sem sepultura a alma viveria miseravelmente e que só pelo seu sepultamento desfrutaria da felicidade eterna. Não era, pois, para a ostentação da dor que se realizava a cerimônia fúnebre, mas para o repouso e felicidade do morto.
Texto extraído do livro: A Cidade Antiga
de: Fustel de Coulanges